sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Romance de Romance - Décimo Capítulo: A moça recém-casada


Apesar da minha aparência um pouco suja, ela me escolhera porque colecionava romances e, na sequência dos que já tinha, só faltava eu. Sua casa parecia um show-room de loja de móveis, tudo em seu lugar, tudo meticulosamente arrumado. Tinha namorado o atual marido por sete anos. Sete anos de carrinho de lanche na sexta, posto de gasolina no sábado final de tarde, boate no sábado à noite, almoço com a família dele aos domingos, televisão domingo a tarde toda e pizza no domingo à noite, algumas vezes iam até Campinas ou Piracicaba no shopping.  Às vezes, depois do carrinho de lanche, iam para um motel, outras vezes era no sábado, depois da boate e outras nas tardes de domingo, com a desculpa de que sairiam para tomar sorvete ou para andar no lago. Faziam um amor meio animalesco, aprendido nos filmes pornográficos dos motéis e voltavam pra casa.
Sete anos nessa rotina tinham trazido certeza de que se conheciam profundamente e de que a vida de casados seria um mar de rosas. Ela não sabia nem fritar ovos e adorava comer fora. Ele também não cozinhava nada e adorava a comida de sua mãe, que fazia todos os seus gostos.
Ao cabo de dois meses de casamento, a vida dos dois já tinha se tornado um verdadeiro inferno. Quanto mais ela lia romances, mais difícil ficava aceitar a própria realidade. Quanto mais ela reclamava, mais grosseiro e infantilizado o moço se tornava. Duas crianças brincando de casinha. Duas famílias em pé de guerra, cada uma acusando a outra de ter criado mal seu filho ou filha, todo mundo metendo o bico onde não era chamado e transformando a vida daqueles dois num caos maior do que já era.

Terminei numa mala cor de rosa (que tinha sido comprada especialmente para a lua de mel em Maceió) juntamente com as roupas dela, rumo à casa dos pais, pra onde ela voltou aos prantos. Três dias depois, depois de muitas conversas secretas pelo celular (seus pais não suportavam mais o moço e sua família),  partiu com sua mala rosa de volta aos braços do marido. Soube que nunca mais leu romances, preferiu encarar a vida real com seus percalços e delícias, e eu, esquecido na estante da casa dos pais dela entre um livro do Paulo Coelho e outro do Lair Ribeiro, fui encontrado meses depois pela sua irmã caçula que, tendo herdado o hábito ou vício de ler romances e me trocou por tantos outros no Sebo Doutor Anselmo.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O Romance de Romance - Nono Capítulo: A doméstica compradeira que só gritava com o marido e os filhos

A meta de sua vida era ser patroa. Sonhava com o dia em que, vestida de seda e linho, usando sapatos de salto altíssimo, humilharia os funcionários e as vizinhas fuleiras de seu tempo de doméstica. Mas ainda era doméstica e tinha aquele marido bobão, que não tinha boca pra nada, que nem era capaz de gritar de volta quando ela gritava com ele. Aquele bola murcha que estragava aqueles moleques deixando que eles fizessem tudo o que queriam. E ela ficava de ruim, da brava e para que tudo funcionasse tinha que gritar, esbravejar, até que as coisas, finalmente, andassem do jeito que ela queria. Sua casa era pequena, seu quintal menor ainda, mas mesmo assim tinha feito o marido trazer na bicicleta uma espreguiçadeira de beira de piscina que conseguira encaixar entre o canteiro de couve e o tanque de lavar roupas. Aos domingos colocava o mini-biquíni que tinha ganhado da patroa, o chapéu de abas largas e faixa colorida que tinha comprado na Seller e lá se deitava enquanto os filhos traziam salgadinhos torcida e cerveja gelada e o marido assava uma carninha na churrasqueira improvisada. Eram esses seus momentos “Revista Caras” como ela costumava dizer. Nessas horas, mais pra imitar a patroa do que pra prestar realmente atenção em minhas páginas, me tomava nas mãos e folheava, soberba, lendo um diálogo por  vez, fingindo que tinha acompanhado a história, fingindo que se emocionava, fingindo que sabia realmente ler.

Voltei daquela casa engordurado, com marcas de copo na página inicial, com sal e pedacinhos de salgadinhos no vão das páginas.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Oitavo Capítulo: A senhora cega e sua leitora de aluguel

Pareciam ser amigas há anos, mas só eu sabia que não tinha sido sempre assim.
Tinham amado o mesmo homem. Tinham sido inimigas por um longo período, trocando telefonemas malcriados, gritos em portões e pragas ao vento.
Ele era casado com a mais nova e tinha a mais velha como amante, um amor secreto que remontava dos tempos em que ele era um adolescente e ela a mãe de um amigo de escola.
Aos sábados sua mulher, vaidosa como ela só, passava o dia no salão de beleza. Sendo assim,  ele tinha consagrado tal dia para o que ele chamava de  “dia oficial da amante”. Para a esposa e os familiares ele dizia que era o dia de ir ao rancho de pescaria com os amigos. Alguns sábados iam pra Pirassununga na Cachoeira de Emas, outros para Conchal, na beira do Rio Mogi, outros para Cordeirópolis num boteco gostoso na beira da estrada de Cascalho e, a cada dois meses, iam para Campinas, passear no Taquaral e tomar sorvete italiano.
Naquele  sábado, já na volta de Campinas, na altura de Americana, sofreram um acidente que mudaria todo o destino daquelas duas mulheres: ele falecera no local e ela sofrera uma lesão forte na cabeça e nos olhos o que a deixaria cega para sempre.
A esposa, como que por encantamento, ao invés de continuar a odiar a amante do falecido marido, foi tomada de um sentimento profundo de compaixão e resolveu devotar algumas horas de sua semana para dar uma atenção especial e fazer companhia à antiga rival.  
 Era como se fosse uma forma de continuar a ter o marido por perto, amando quem ele tinha tanto amado.  Foi a partir de então que a esposa um dia traída e despeitada, tornou-se a mais leal das amigas indo à casa da que um dia fora a razão de seu sofrimento e mágoa para ler romances, três vezes por semana, casa esta  que o marido havia montado para a amante com as economias do casal.
Chegava ao grau mais alto ainda de benevolência e delicadeza quando, percebendo que a amiga não estava gostando do rumo da história, inventava passagens mais emocionantes, ou cenas mais picantes que faziam a senhora virar os olhinhos para o alto e sorrir suspirando de alegria.
Quando o livro acabava, vinham até o sebo escolher outro.

A vida tem dessas, vira, revira, venta e sacode, pra depois desvirar e passar suavemente, feito brisa em noite de verão...

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Sétimo Capítulo: As três irmãs fazedeiras

Uma era solteira, uma viúva e a outra “largada” com diziam. A solteira esperava até hoje que seu grande amor voltasse para busca-la, a viúva tinha enterrado o marido após uma longa doença. Eles tinham vivido bem, se amavam e se respeitavam muito. A “largada” tinha sido trocada pela moça que vendia Yakult, motivo pelo qual a simples menção de tal produto tinha o poder de lhe provocar enjôos e urticárias. Apesar dos percalços que tinham passado, elas eram alegres e dinâmicas, viviam numa casa muito clara e muito limpa (ao contrário da casa anterior), com vasos de flores e samambaias por toda parte. Me liam ao mesmo tempo, num revezamento sincrônico que dava gosto de ver. Enquanto a viúva fazia almoço, a solteira me lia. Enquanto a solteira bordava, a “largada” me lia e enquanto a "largada" lavava e passava as roupas era a viúva quem me lia. Elas me marcavam de modos diferentes: uma dobrando o canto superior da página, outra o canto inferior e já a terceira usava um marcador de livros com a imagem de Nossa Senhora Aparecida com uma oração impressa no verso. Me leram rapidamente, as três e, no dia de pagar a conta de água do Saema, já me levaram de volta pras estantes do Sebo. Fui trocado por um outro romance, mais antigo que eu. Elas gostavam muito de ler, as irmãs fazendeiras. E eu gostei muito muito delas...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Sexto Capítulo: Divorciada morando com filho

Ela era magra, bem branca e andava encurvada para frente. Entrou no Sebo Doutor Anselmo num começo de tarde, depois de ter levado o filho na escola. Passou os dedos finos sobre o dorso de vários livros, mas acabou me escolhendo. Fiquei contente por sair mais uma vez das prateleiras, ela pagou, me colocou na sua velha bolsa preta de couro, junto com remédios, chicletes, receitas para mais remédios, papéis de banco, baton, lenço e terço. Tudo correu bem até a hora de buscar o menino na escola. Ela tinha ido a uma consulta e me leu na sala de espera, depois me leu no ponto de ônibus, e, finalmente, num banco da pracinha perto da escola do menino, até que ele chegou. O menino gritava o tempo todo com ela, corria na frente, ameaçava atravessar a rua, mas era esperto o suficiente para não fazê-lo, até eu, na minha ingenuidade de romance de bolsa, já tinha desvendado todo o mecanismo dominador/dominado daquele relacionamento, mas ela não. Chegamos em casa depois de ter sido chacoalhado dentro da bolsa, entre correrias e puxões. Ela estava exausta, o menino tinha sugado toda sua energia. Entraram correndo na pequena casa e ele já ligou a televisão. O menino era, definitivamente, mimado e dominador e, por algum motivo, ela não sabia falar não. Ela lia quando ele dormia, ou quando jogava videogame, entre um manhêê e outro. A cada manhêê um copo de refrigerante, salgadinhos de pacote, bolacha recheada, chocolates, pipocas, fiquei um pouco engordurado também, melecado de chocolate derretido. O menino me lançou pelo espaço e fui parar num vão empoeirado, atrás do móvel da T.V. Ela não limpava muito a casa, preocupada sempre em servir o menino, em fazer compras, em ir ao psiquiatra para pegar mais e mais receitas de anti-depressivo. Fiquei naquele vão empoeirado por uns vinte ou trinta dias e fui encontrado numa gloriosa manhã de faxina. Essa aventura radical tinha me custou uma das páginas, que rasgada de fora a fora precisou posteriormente de um trabalho minucioso da Chica, com ajuda de durex e réguas para que eu ficasse mais ou menos. Além disso, eu estava extremamente empoeirado. Como ela era alérgica, resolveu me devolver sem terminar de me ler totalmente. Gostei. Não aguentava mais ficar naquela casa.

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Quinto Capítulo: A Família feliz

Desta vez dei sorte, depois de ter sido limpo e lustrado e me deliciado com as brincadeiras e carinho da Chica, funcionária do Sebo, fui escolhido por uma simpática jovem senhora que entrou acompanhada do marido e filhos. Enquanto o marido procurava na seção de Revistas sobre Eletrônicos, a filha vagava pelas prateleiras da literatura estrangeira e o filho se deliciava entre gibis do Batman e Homem Aranha, ela se aproximou docemente das estantes dos romances, exalando um perfume doce e suave, estendeu a mão esquerda e me segurou, soltando um gritinho de alegria. Explicou à Chica que meu número tinha esgotado. Procura em vão na banca da praça e estava muito feliz por ter me encontrado ali. Colocou-me numa bolsa bonita, toda dourada, entre fotos dos filhos, controle do portão eletrônico, balas e chicletes, lenços de papel, carteira, um pequeno “nécessaire”, contas à pagar e catálogo da Natura e seguimos em direção ao carro da família. A casa era arejada, colorida, cheia de fotos nos porta retratos e lindos quadros nas paredes. Ela tinha o costume de me ler na varanda, deitada na rede branca com barrados de macramê ao lado de um jardim bem cuidado, com folhagens, arbustos e flores visitadas por beija-flores e borboletas. De dentro da casa vinha o som de uma música suave que a filha costumava ouvir, enquanto o filho ficava no computador e o marido, no quartinho dos fundos, mexia com seus aparelhos eletrônicos e carrinhos de controle remoto. Ela me leu rapidamente, mas por sorte, esqueceu-me sobre a estante do escritório e pude passar uma temporada agradável, acolhido por esta família feliz!

sábado, 24 de janeiro de 2015

O romance de Romance - Quarto Capítulo: Mulher submissa e oprimida

Não me demorei muito no Sebo Doutor Anselmo. Só o suficiente para apreciar os quadros da parede ao lado da vitrine, que traziam em bico de pena, gravuras de algumas capitais da Europa. Ainda no balcão, fui escolhido por uma freguesa de aparência triste e costas um pouco curvadas. Tudo era acinzentado nela: a pele, as roupas, a bolsa, o ar que exalava pelas narinas cansadas de respirar. Colocou-me numa sacola plástica de farmácia, onde encontrei uma caixa de anti-depressivos, e uma bolsa pequena, daquelas onde se guardam o terço para a missa, uma imagem de São Sebastião e suas flechas cravadas no corpo, um lenço bordado com suas iniciais, as chaves da casa e algumas moedas para o pão. Sua casa era pequena e escura e cheirava à gordura velha. Ela se movia como um fantasma, quase sem pisar no chão e mesmo assim um homem gordo e suado que estava esparramado numa poltrona diante da televisão, ordenou, num grito, que fizesse silêncio. Na TV passava um daqueles seriados antigos de Bang-bang ou faroeste, como o marido dizia. Minha nova dona se esgueirou até o banheiro onde se trancou para ler, afoita, minhas primeiras páginas. Percebi rapidamente que o marido não gostava que lesse romances e que eu era, para ela, como um amante, um vício secreto, um mundo só seu onde ninguém conseguia penetrar. Quando ele começou a gritar pela cerveja e pelo torresmo, praguejando a respeito do tempo que ela passava trancada no banheiro, ela me escondeu rapidamente no fundo do cesto de roupas sujas e partiu para a cozinha. Fui lido ao longo de programas de humor barato com mulheres seminuas, de apresentações de luta livre, das vozes do Silvio Santos, do Raul Gil, do Leão Lobo e outros mais... a cada intervalo, um grito, a cada grito, o tremor das mãos, a respiração sofrida entrecortada, as costas curvando-se ainda mais um pouco, os dedos segurando minhas páginas com aflição, com se segurassem a esperança num destino melhor. Escondido na sacola da feira, fui levado de volta ao Sebo, aliviado por sair daquela penumbra grudenta, repleta de autoritarismo e medo.