quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Oitavo Capítulo: A senhora cega e sua leitora de aluguel

Pareciam ser amigas há anos, mas só eu sabia que não tinha sido sempre assim.
Tinham amado o mesmo homem. Tinham sido inimigas por um longo período, trocando telefonemas malcriados, gritos em portões e pragas ao vento.
Ele era casado com a mais nova e tinha a mais velha como amante, um amor secreto que remontava dos tempos em que ele era um adolescente e ela a mãe de um amigo de escola.
Aos sábados sua mulher, vaidosa como ela só, passava o dia no salão de beleza. Sendo assim,  ele tinha consagrado tal dia para o que ele chamava de  “dia oficial da amante”. Para a esposa e os familiares ele dizia que era o dia de ir ao rancho de pescaria com os amigos. Alguns sábados iam pra Pirassununga na Cachoeira de Emas, outros para Conchal, na beira do Rio Mogi, outros para Cordeirópolis num boteco gostoso na beira da estrada de Cascalho e, a cada dois meses, iam para Campinas, passear no Taquaral e tomar sorvete italiano.
Naquele  sábado, já na volta de Campinas, na altura de Americana, sofreram um acidente que mudaria todo o destino daquelas duas mulheres: ele falecera no local e ela sofrera uma lesão forte na cabeça e nos olhos o que a deixaria cega para sempre.
A esposa, como que por encantamento, ao invés de continuar a odiar a amante do falecido marido, foi tomada de um sentimento profundo de compaixão e resolveu devotar algumas horas de sua semana para dar uma atenção especial e fazer companhia à antiga rival.  
 Era como se fosse uma forma de continuar a ter o marido por perto, amando quem ele tinha tanto amado.  Foi a partir de então que a esposa um dia traída e despeitada, tornou-se a mais leal das amigas indo à casa da que um dia fora a razão de seu sofrimento e mágoa para ler romances, três vezes por semana, casa esta  que o marido havia montado para a amante com as economias do casal.
Chegava ao grau mais alto ainda de benevolência e delicadeza quando, percebendo que a amiga não estava gostando do rumo da história, inventava passagens mais emocionantes, ou cenas mais picantes que faziam a senhora virar os olhinhos para o alto e sorrir suspirando de alegria.
Quando o livro acabava, vinham até o sebo escolher outro.

A vida tem dessas, vira, revira, venta e sacode, pra depois desvirar e passar suavemente, feito brisa em noite de verão...

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Sétimo Capítulo: As três irmãs fazedeiras

Uma era solteira, uma viúva e a outra “largada” com diziam. A solteira esperava até hoje que seu grande amor voltasse para busca-la, a viúva tinha enterrado o marido após uma longa doença. Eles tinham vivido bem, se amavam e se respeitavam muito. A “largada” tinha sido trocada pela moça que vendia Yakult, motivo pelo qual a simples menção de tal produto tinha o poder de lhe provocar enjôos e urticárias. Apesar dos percalços que tinham passado, elas eram alegres e dinâmicas, viviam numa casa muito clara e muito limpa (ao contrário da casa anterior), com vasos de flores e samambaias por toda parte. Me liam ao mesmo tempo, num revezamento sincrônico que dava gosto de ver. Enquanto a viúva fazia almoço, a solteira me lia. Enquanto a solteira bordava, a “largada” me lia e enquanto a "largada" lavava e passava as roupas era a viúva quem me lia. Elas me marcavam de modos diferentes: uma dobrando o canto superior da página, outra o canto inferior e já a terceira usava um marcador de livros com a imagem de Nossa Senhora Aparecida com uma oração impressa no verso. Me leram rapidamente, as três e, no dia de pagar a conta de água do Saema, já me levaram de volta pras estantes do Sebo. Fui trocado por um outro romance, mais antigo que eu. Elas gostavam muito de ler, as irmãs fazendeiras. E eu gostei muito muito delas...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Sexto Capítulo: Divorciada morando com filho

Ela era magra, bem branca e andava encurvada para frente. Entrou no Sebo Doutor Anselmo num começo de tarde, depois de ter levado o filho na escola. Passou os dedos finos sobre o dorso de vários livros, mas acabou me escolhendo. Fiquei contente por sair mais uma vez das prateleiras, ela pagou, me colocou na sua velha bolsa preta de couro, junto com remédios, chicletes, receitas para mais remédios, papéis de banco, baton, lenço e terço. Tudo correu bem até a hora de buscar o menino na escola. Ela tinha ido a uma consulta e me leu na sala de espera, depois me leu no ponto de ônibus, e, finalmente, num banco da pracinha perto da escola do menino, até que ele chegou. O menino gritava o tempo todo com ela, corria na frente, ameaçava atravessar a rua, mas era esperto o suficiente para não fazê-lo, até eu, na minha ingenuidade de romance de bolsa, já tinha desvendado todo o mecanismo dominador/dominado daquele relacionamento, mas ela não. Chegamos em casa depois de ter sido chacoalhado dentro da bolsa, entre correrias e puxões. Ela estava exausta, o menino tinha sugado toda sua energia. Entraram correndo na pequena casa e ele já ligou a televisão. O menino era, definitivamente, mimado e dominador e, por algum motivo, ela não sabia falar não. Ela lia quando ele dormia, ou quando jogava videogame, entre um manhêê e outro. A cada manhêê um copo de refrigerante, salgadinhos de pacote, bolacha recheada, chocolates, pipocas, fiquei um pouco engordurado também, melecado de chocolate derretido. O menino me lançou pelo espaço e fui parar num vão empoeirado, atrás do móvel da T.V. Ela não limpava muito a casa, preocupada sempre em servir o menino, em fazer compras, em ir ao psiquiatra para pegar mais e mais receitas de anti-depressivo. Fiquei naquele vão empoeirado por uns vinte ou trinta dias e fui encontrado numa gloriosa manhã de faxina. Essa aventura radical tinha me custou uma das páginas, que rasgada de fora a fora precisou posteriormente de um trabalho minucioso da Chica, com ajuda de durex e réguas para que eu ficasse mais ou menos. Além disso, eu estava extremamente empoeirado. Como ela era alérgica, resolveu me devolver sem terminar de me ler totalmente. Gostei. Não aguentava mais ficar naquela casa.

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Quinto Capítulo: A Família feliz

Desta vez dei sorte, depois de ter sido limpo e lustrado e me deliciado com as brincadeiras e carinho da Chica, funcionária do Sebo, fui escolhido por uma simpática jovem senhora que entrou acompanhada do marido e filhos. Enquanto o marido procurava na seção de Revistas sobre Eletrônicos, a filha vagava pelas prateleiras da literatura estrangeira e o filho se deliciava entre gibis do Batman e Homem Aranha, ela se aproximou docemente das estantes dos romances, exalando um perfume doce e suave, estendeu a mão esquerda e me segurou, soltando um gritinho de alegria. Explicou à Chica que meu número tinha esgotado. Procura em vão na banca da praça e estava muito feliz por ter me encontrado ali. Colocou-me numa bolsa bonita, toda dourada, entre fotos dos filhos, controle do portão eletrônico, balas e chicletes, lenços de papel, carteira, um pequeno “nécessaire”, contas à pagar e catálogo da Natura e seguimos em direção ao carro da família. A casa era arejada, colorida, cheia de fotos nos porta retratos e lindos quadros nas paredes. Ela tinha o costume de me ler na varanda, deitada na rede branca com barrados de macramê ao lado de um jardim bem cuidado, com folhagens, arbustos e flores visitadas por beija-flores e borboletas. De dentro da casa vinha o som de uma música suave que a filha costumava ouvir, enquanto o filho ficava no computador e o marido, no quartinho dos fundos, mexia com seus aparelhos eletrônicos e carrinhos de controle remoto. Ela me leu rapidamente, mas por sorte, esqueceu-me sobre a estante do escritório e pude passar uma temporada agradável, acolhido por esta família feliz!

sábado, 24 de janeiro de 2015

O romance de Romance - Quarto Capítulo: Mulher submissa e oprimida

Não me demorei muito no Sebo Doutor Anselmo. Só o suficiente para apreciar os quadros da parede ao lado da vitrine, que traziam em bico de pena, gravuras de algumas capitais da Europa. Ainda no balcão, fui escolhido por uma freguesa de aparência triste e costas um pouco curvadas. Tudo era acinzentado nela: a pele, as roupas, a bolsa, o ar que exalava pelas narinas cansadas de respirar. Colocou-me numa sacola plástica de farmácia, onde encontrei uma caixa de anti-depressivos, e uma bolsa pequena, daquelas onde se guardam o terço para a missa, uma imagem de São Sebastião e suas flechas cravadas no corpo, um lenço bordado com suas iniciais, as chaves da casa e algumas moedas para o pão. Sua casa era pequena e escura e cheirava à gordura velha. Ela se movia como um fantasma, quase sem pisar no chão e mesmo assim um homem gordo e suado que estava esparramado numa poltrona diante da televisão, ordenou, num grito, que fizesse silêncio. Na TV passava um daqueles seriados antigos de Bang-bang ou faroeste, como o marido dizia. Minha nova dona se esgueirou até o banheiro onde se trancou para ler, afoita, minhas primeiras páginas. Percebi rapidamente que o marido não gostava que lesse romances e que eu era, para ela, como um amante, um vício secreto, um mundo só seu onde ninguém conseguia penetrar. Quando ele começou a gritar pela cerveja e pelo torresmo, praguejando a respeito do tempo que ela passava trancada no banheiro, ela me escondeu rapidamente no fundo do cesto de roupas sujas e partiu para a cozinha. Fui lido ao longo de programas de humor barato com mulheres seminuas, de apresentações de luta livre, das vozes do Silvio Santos, do Raul Gil, do Leão Lobo e outros mais... a cada intervalo, um grito, a cada grito, o tremor das mãos, a respiração sofrida entrecortada, as costas curvando-se ainda mais um pouco, os dedos segurando minhas páginas com aflição, com se segurassem a esperança num destino melhor. Escondido na sacola da feira, fui levado de volta ao Sebo, aliviado por sair daquela penumbra grudenta, repleta de autoritarismo e medo.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Terceiro Capítulo: A senhora idosa

Vivia com o marido. Um senhor aposentado do INSS, metido a sabe-tudo e cheio de contatos e amigos. Ele passava o dia pela rua conversando ou jogando dominó na pracinha do Tiro de Guerra e à noite sentava-se no sofá da sala para zapear todos os canais de notícia até que o sono chegasse. Aos sábados, alegava participar da equipe de bocha do clube e visitava sua amante de longa data: a ex-faxineira da agência do INSS, uma senhora cheia de decotes e curvas já acidentadas pelas varizes, celulites e gorduras que o tempo e a boa vida de amante tinham lhe rendido. A senhora idosa aproveitava o dia para assistir seus programas de TV favoritos e quando o marido chegava, sentava-se na poltrona da sala de estar para fazer crochê, telefonar para sua sobrinha ou ler romances que a mesma sobrinha lhe emprestava. Folheava minhas páginas com uma certa resignação, como se nada daquilo realmente importasse, mas, nos trechos mais românticos, deixava escapar um suspiro fundo, cheio de lembranças e angústias e eu podia então ler em seus olhos a desilusão de um amor não-correspondido e a dor de ter concordado com um casamento sem amor para fugir do terror de ficar para titia. Tinha ficado para titia, de qualquer forma. Uma vida à dois sem sexo tinha sido a maneira mais eficaz de evitar os filhos, que, no fundo, ela não sabia se queria ter tido ou não. A sobrinha era seu único elo afetivo com o mundo. Quando terminou de me ler, esperou chegar a manhã de sábado, colocou-me numa bolsa de couro velha, cheirando à mofo e levou-me para o Sebo Doutor Anselmo, onde fui trocado por uma revista de biquinhos de crochê para dar acabamento em panos de prato.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O Romance de Romance - Segundo Capítulo: A Moça Romântica

Era uma bolsa rosa de plástico e dentro dela encontrei um baton rosa, chaves, um aparelho de telefone celular, um estojinho com escova e pasta de dentes, uma carteira e algumas presilhas de cabelo. A moça que me comprara era loira, de pele bem clara. Vestia uma blusa rosa com rendas brancas, uma saia rodada e sapatilhas de boneca. Sua casa era simples, pequena e extremamente limpa. Seu quarto todo rosa, cheio de pôsters de artistas de cinema nas paredes. Ela vivia sozinha mas isso não parecia ser motivo de incômodo ou angústias pois ela tinha a mim e aos outros livros como companhia. Trabalhava como vendedora num loja e levava uma vida previsível e repetitiva. A rotina a mantinha equilibrada e seguia seu dia-a-dia respeitando a ordem e o método que havia imposto a si mesma há anos. Tinha 37 anos mas aparentava 17 nas maneiras e na forma de pensar e reagir às coisas do mundo. Sonhava com o príncipe encantado que um dia viria à sua porta, montado em seu cavalo branco, resgatando-a daquele mundo rosa e plastificado. Folheava minhas páginas suspirando de leve. Se o telefone tocasse, ia atender irritada, mas disfarçava a voz para que não percebessem. Recebia telefonemas de algumas amigas do trabalho e, principalmente de uma tia-avó que todo dia ligava para reclamar do marido, ou de alguma doença imaginária. Ouvia pacientemente os lamentos e histórias das interlocutoras e voltava afoita para o nosso mundo: um mundo encontros e desencontros, que sempre terminava em declarações de amor e uniões mágicas e eternas. Assim que terminou de me ler, emprestou-me à sua tia-avó. Aquela que ligava todo dia.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O romance de romance - Primeiro Capítulo : Da gráfica para a banca... da banca para a primeira bolsa

Os primeiros lampejos de consciência que tive, me vêm à memória um pouco nebulosos. Éramos muitos livros iguais, prensados e arranjados em fardos. Da gráfica onde nascemos fomos transportados para uma distribuidora e depois separados, para sermos encaminhados em pequenos grupos de iguais para as bancas de jornal. Lembro-me da viagem longa, sacolejando no furgão, entre revistas e gibis, até chegar à banca da Praça Barão de Araras, onde fiquei exposto, admirando o Obelisco, a Fonte e o Coreto, a fachada da Igreja Matriz, a alameda de árvores que ladeiam a calçada, a loja de noivas, a esquina do Bradesco onde, segundo me contaram as estantes da banca de jornais, um dia existiu o casarão da Família Zurita Fernandes. Numa manhã de sol forte e céu azul, fui escolhido, pago e colocado na primeira bolsa de mulher.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Romance de Romance – memórias de um livro feminino de bolso - Prefácio

Conheci Romance no pátio de uma usina de reciclagem de lixo. Ele estava descorado, com a capa pela metade e as páginas puídas, grudadas pelo vai e vem da umidade, da chuva, do sol e do vento. Eu não tentei, mas talvez nem fosse mais possível lê-lo. Isso pouco me importava, eu não queria saber das histórias de amor cheias de ilusão e finais felizes, o que eu queria, naquele momento, passados quase cincoenta anos de existência, era a realidade, a vida cotidiana de moças, jovens e senhoras. Vidas vividas, choradas, sorridas, suadas, corridas, cansadas e até às vezes, divertidas das mulheres que tinham por hábito (e talvez até por vício) ler romances de bolso. E isso, cara leitora, isso Romance podia me dar. Escondi-o rapidamente na bolsa e saí apressada da usina de reciclagem sabendo que levava comigo um tesouro. No início, tive que ter paciência e cuidado, pois Romance ainda estava muito abalado com o que vira na usina de reciclagem. Segundo ele, de tudo o que vivenciara desde a gráfica onde nascera, à banca de jornal, à primeira bolsa que frequentara, às idas e vindas do Sebo Doutor Anselmo, entrando e saindo de tantas bolsas femininas, nada se compararia à degradação humana que ele assistira na usina de reciclagem. Mas esta era uma outra história que Romance preferia esquecer, uma história de ausência de princípios, de falta de ética e humanidade, de horror por assim dizer. Romance queria mesmo se recuperar para contar o que ele chamava de “pérolas da humanidade”, ou seja, a vida (e morte) das mulheres que manusearam suas páginas, que suspiraram pela história, que o guardaram e tiraram tantas vezes de suas bolsas, os momentos mágicos nas estantes do Sebo Doutor Anselmo... Romance se considera recuperado e pronto, daqui para frente deixo a ele o papel de narrador desta história, composta de muitas outras histórias. Adriana Dezotti Fernandes Chácara Cavalinho Pucareno. Domingo, 21 de novembro de 2010.