sábado, 24 de janeiro de 2015

O romance de Romance - Quarto Capítulo: Mulher submissa e oprimida

Não me demorei muito no Sebo Doutor Anselmo. Só o suficiente para apreciar os quadros da parede ao lado da vitrine, que traziam em bico de pena, gravuras de algumas capitais da Europa. Ainda no balcão, fui escolhido por uma freguesa de aparência triste e costas um pouco curvadas. Tudo era acinzentado nela: a pele, as roupas, a bolsa, o ar que exalava pelas narinas cansadas de respirar. Colocou-me numa sacola plástica de farmácia, onde encontrei uma caixa de anti-depressivos, e uma bolsa pequena, daquelas onde se guardam o terço para a missa, uma imagem de São Sebastião e suas flechas cravadas no corpo, um lenço bordado com suas iniciais, as chaves da casa e algumas moedas para o pão. Sua casa era pequena e escura e cheirava à gordura velha. Ela se movia como um fantasma, quase sem pisar no chão e mesmo assim um homem gordo e suado que estava esparramado numa poltrona diante da televisão, ordenou, num grito, que fizesse silêncio. Na TV passava um daqueles seriados antigos de Bang-bang ou faroeste, como o marido dizia. Minha nova dona se esgueirou até o banheiro onde se trancou para ler, afoita, minhas primeiras páginas. Percebi rapidamente que o marido não gostava que lesse romances e que eu era, para ela, como um amante, um vício secreto, um mundo só seu onde ninguém conseguia penetrar. Quando ele começou a gritar pela cerveja e pelo torresmo, praguejando a respeito do tempo que ela passava trancada no banheiro, ela me escondeu rapidamente no fundo do cesto de roupas sujas e partiu para a cozinha. Fui lido ao longo de programas de humor barato com mulheres seminuas, de apresentações de luta livre, das vozes do Silvio Santos, do Raul Gil, do Leão Lobo e outros mais... a cada intervalo, um grito, a cada grito, o tremor das mãos, a respiração sofrida entrecortada, as costas curvando-se ainda mais um pouco, os dedos segurando minhas páginas com aflição, com se segurassem a esperança num destino melhor. Escondido na sacola da feira, fui levado de volta ao Sebo, aliviado por sair daquela penumbra grudenta, repleta de autoritarismo e medo.

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